A Inquisição Medieval

R.
20 min readOct 24, 2020
Afonso X, o Sábio

“A Madre de Jhesu-Cristo, que é Sennor de nobrezas,

non soffre que en sa casa façan furtos nen vilezas”

A epígrafe deste início está na trigésima segunda cantiga das Cantigas de Santa Maria, escritas no século XIII por Afonso X, rei de Leão e Castela. A cantiga conta como Santa Maria de Montserrat descobriu um furto feito em sua igreja[1] e desenrola a história no cotidiano religioso da Idade Média, descrevendo um furto realizado por ambiciosos que desrespeitaram a Deus ao roubar o dinheiro de certa igreja. Para resolver o problema, o eu lírico repassa a história do milagre de Santa Maria, que não permitiu que saíssem da igreja até que se arrependessem, retornassem o dinheiro e dissessem a todos como haviam errado.

A cantiga expressa dois lados: o justo e o errado. O errado, a priori, não respeita nem a sacralidade da fé, nem o dinheiro dos fiéis; e busca apenas enriquecer-se, imaginando a impunidade. O justo, por sua vez, responde com justiça a um erro inicial para reparar a má obra e ainda pede pelo reconhecimento do feito, para que esse não volte a se repetir. O contexto da história da cantiga pode levar a uma reflexão sobre o período em que foi escrita: a Idade Média.

Ainda permanecendo na cantiga, é possível extrair a veemência com que o autor fala da importância da verdade, da justiça, da hierarquia, da religião e da humildade.[2] Ao observar o reflexo da sociedade na cantiga, muitas das instituições e organizações dela contemporâneas são transladadas em outro aspecto de pensamento, a saber, o do homem medieval.

O homem (ou os homens)

No livro “O Homem Medieval”, escrito por especialistas na idade Média, a ideia de pluralidade de personalidades é explorada logo de início, pois reconhece-se que o período produziu vários tipos de homem. A obra cita dos monges aos camponeses; dos citadinos aos mercadores e do marginal ao santo, porém, algumas características eram universais, como a religião e o trabalho (intelectual ou braçal). O homem vivia abaixo do Céu e acima do inferno, aceitando os sofrimentos diários para apresentar-se no Juízo e servindo aos irmãos por Deus.

“O homem medieval vê-se obrigado — e não apenas pela sua própria experiência de vida, mas também pelos ensinamentos da Igreja — a viver na dualidade corpo/alma. Cada parte do corpo, cada sintoma carnal é um sinal simbólico que remete para a alma.” (LE GOFF, 1989)

Uma boa representação do homem da Alta Idade Média, segundo os mesmos autores, é a figura bíblica de Jó:

“Job é o homem que tem de aceitar a vontade de Deus sem procurar outra justificação que não seja o arbítrio divino. De facto, é menos pecador do que qualquer outro homem: «era um homem simples e recto, temente a Deus, que fugia do mal» (Job, 1,1)”. (Ibid.)

A pintura “The Angelus” retrata uma imagem comum da Idade Média, a oração periódica do Angelus.

Como é possível observar, o homem medieval era marcado fortemente pela religião e não se detinha na realidade natural, mas considerava a sua alma como bem preciosíssimo. Por essa razão, a heresia seria um perigoso ferimento e deveria ser tratada como tal. A Igreja Universal englobava todas as comunidades e tinha forte presença em todos os locais, desde as grandes catedrais às casas servis, promovendo uma “tenaz pregação catequista”[3] nas diversas situações do dia: festas religiosas; procissões e badaladas dos sinos, que culminavam sempre na oração do Angelus (6:00, 12:00 e 18:00).

A heresia no medievo

As peregrinações, as catedrais, as cruzadas e as universidades foram símbolos maciços do medievo católico numa construção de seiscentos anos, como atesta o historiador francês Daniel-Rops[4], e havia se tornado a rocha angular de toda a Europa após a queda do Império Romano: a Cristandade. O espírito popular, apesar das tribulações do cotidiano, era otimista e feliz. A noção do propósito e finalidade da vida era, per se, razão de perseverança.

“O espírito humano, com a sua plasticidade, se adapta às condições de vida, ainda que árduas, e a tudo se habitua. Havia distrações, havia alegria, cantos, danças, feiras com espetáculos, fé religiosa, havia poesia. As expectativas do homem do povo eram modestas.” (GONZAGA, 1993)

Não obstante, outra característica marcante do período foram as heresias. Se falarmos da etimologia da palavra, heresia vem do grego hairesis, que significa escolha e possui relação concreta com seu sentido na religião. A escolha, nesse caso, está ligada com as verdades de fé que um católico deve seguir e, por isso, a não aceitação (pertinaz e plenamente consciente) de alguma o torna herege. Segundo a Igreja Católica[5], o batismo é condição necessária para que alguém seja herege. Logo, os pagãos não podem ser hereges, dito que jamais professaram a fé.

A história das heresias é concomitante com o espalhamento da Igreja pelos povos, mas foi durante os séculos XII e XIII que tiveram uma gravidade acentuada, tanto pela ascensão do gnosticismo, quanto pelos conflitos que extrapolavam a filosofia e a teologia. As relações dos poderes seculares ousavam, muitas das vezes, responder em nome da ortodoxia pelos mais esdrúxulos pretextos, já que contavam com a simplicidade religiosa popular. Mais a frente veremos exemplos mais nítidos dessa atuação.

Durante esse período, pois, destaca-se a heresia cátara; que teve papel preciso para a instauração da Inquisição Medieval.

A Igreja, o povo e os hereges

O espírito do homem medieval era fervorosamente religioso e desapegado de si mesmo, principalmente para os cristãos que encaravam o martírio em situações tenebrosas. Em certas situações, no entanto, todo esse fervor se aliava à precária e demorada comunicação entre as pessoas, gerando desentendimentos graves.

A ordem social era posta em conjuntura com a religião, visto que muitos reis tomavam para si a decisão do julgamento dos hereges; em que muitas das vezes era correlacionado ao desejo da população. Roberto o Piedoso, por exemplo, atirou quatorze hereges na fogueira duzentos anos antes da Inquisição; bastando-se de sua vontade, sem a consulta da Igreja. Pedro II de Aragão; Raimundo V, conde de Toulouse; Henrique II e Felipe Augusto de França são outros exemplos de repressores dos heréticos. O ressurgimento do Direito Romano gerou um entremeio de confusões, elevando o poder acusatório à plena justiça tal qual era a vontade do soberano. Durante esse período, houve réplica da Igreja: “O Papa Alexandre III (1159–1181), no Concílio de Latrão III, de 1179, pediu aos soberanos seculares que impusessem silêncio aos perturbadores da ordem pública, se fosse necessário pela força, mas não com a pena de morte.” (AQUINO, 2009)

Sobre a oposição do fim das penas, comenta o Prof. Dr. João Bernadino Gonzaga (1993)

“Não se cogitava de penas com função reeducativa, exceto no Direito da Igreja. Os castigos da Justiça comum tinham mais propriamente o sentido de vingança, contra aquele que violara as ordens do rei e que era depois julgado pelos seus juízes. A par disso, a punição devia ser exemplar, escarmentando o povo, a fim de convencê-lo a respeitar as leis.”

A visão naturalista de mundo que esmaga a ciência e a história nos tempos hodiernos torna a percepção da mente medieval um tanto que antiquada. O mundo natural para os medievais, todavia, estava muito abaixo da realidade sobrenatural; bem como a certeza convicta da fé, que estava muito acima do relativismo geral. A população cristã considerava a religião como bem maior de suas vidas e reagiam às heresias da forma mais brusca possível, desrespeitando, muitas vezes, a própria Igreja.

“Foi, portanto, a opinião pública que exigiu com muita frequência das autoridades um castigo exemplar para os culpados, chegando às vezes até́ a substituí-la nessa tarefa”. “Todo o regime político e social estava alicerçado sobre a fé; as instituições apoiavam-se nos Artigos do Credo” (op. cit., apud. AQUINO, 2009).

Os cátaros ou albigenses

A heresia cátara foi, com certeza, a de maior disseminação estruturada da Baixa Idade Média; conquistando um grande número de adeptos e provocando alto perigo social. De caráter dualista, os cátaros criam na existência de duas divindades, a boa e a má; considerando a boa como criadora dos espíritos e a má como criadora de toda a matéria (inclusive o mundo, contrariando a narrativa do Gênesis). Dentre outras regiões, os cátaros se espalharam em Albi, no sul da França; podendo ser chamados de albigenses por sua localização. Contudo, chamam-se também albigenses outras heresias próximas em matéria e localização, tendo em vista a aderência de outros erros de seitas menores.

Iluminura representando os cátaros

As seitas heréticas que dariam origem aos cátaros têm início no século XI, mas só viriam a se espalhar uniformemente no século XII, quando obtiveram a uniformização e a disseminação de seus erros, que se deu tanto pelos bispos corrompidos, quanto pelos descontentados com a recente Reforma Gregoriana. Segundo o historiador Nachman Falbel (1976), “o movimento herético foi um aspecto do renascimento religioso da época e, em parte, um subproduto das mudanças culturais, sociais e econômicas dos sé

culos XI e XII”. Com sua fúria intransigente, os cátaros foram se espalhando cada vez mais rapidamente, tomando bispados na França e Itália.

Dividiam-se em dois grupos: os perfeitos e os crentes. A elite dos perfeitos tinha a posição mais alta da divisão hierárquica dos cátaros, elevando-se a si mesmos como iluminados e superiores, disseminando o dualismo com mais veemência aos crentes. Os perfeitos e os crentes não se misturavam, eram muito distintos pela “elevação”. Fora isso, os crentes serviam e alimentavam os mais ascéticos.[6]

O clero do sul da França era grande alvo dos cátaros. Observou-se uma forma fácil de unir as riquezas da seita cátara com os bispos corruptos e entrelaçados no secularismo.

A falar da crença, o dualismo não era completamente uniforme entre os adeptos: algumas regiões possuíam diferenças, moldando mudanças de acordo com a radicalidade. No geral, é possível afirmar que os perfeitos sempre possuíam um caráter mais agressivo e radical, onde disseminavam erros como o suicídio libertador; forte violência contra os corpos e horror à procriação (perpetuação da matéria).

Também não deixaram de chegar na crucialidade da fé, o próprio Jesus Cristo. Os hereges cátaros criam que Jesus foi um anjo iluminado enviado para preambular a salvação e que todo Seu sofrimento havia sido mera ilusão.

A heresia inflamada

A Igreja tentou sucessivamente a conversão dos cátaros por meio de pregadores e concílios, mas fracassou devido à tenacidade dos hereges. Enquanto isso, espalhava-se um verdadeiro caos social: saques, homicídios, depredações e sacrilégios por diversas partes da Europa.

“Em 1241, 15% da população de Montalban eram hereges; 5 a 6% de Toulouse em 1260; 2,5 a 5% de Albi entre 1285 e 1300, e 2,5% de Béziers em 1209; o catarismo era constante em toda a região do Languedoc da França, no século XIII.” (Simp. Vat., p. 81, apud AQUINO, 2009)

A resposta mais firme iniciou com a utilização do poder secular para as penas mais duras no II Concílio de Latrão, sucedido pela reafirmação no concílio seguinte. O Papa Lúcio III, figura importante para a instituição da Inquisição anos mais tarde, uniu-se ao sacro imperador romano-germânico Frederico I para repreender os hereges na península italiana, ganhando um pequeno avanço na conversão. Era posto em prática uma prefiguração de alguns pilares da Inquisição, como a relação entre o poder laico e a Igreja, além da aplicação de que todo fiel fosse obrigado a denunciar as heresias.

Na mesma linha ativa, o Papa Celestino III aliou-se aos reis Afonso II e Pedro II para obrigar os valdenses a saírem do reino em certo limite de tempo, sob pena de poderem ser castigados por qualquer um, mesmo que sem mutilações ou morte.

Martírio de São Pedro de Verona, monge dominicano que pregava aos hereges.

O estopim, no entanto, se deu quando o cátaro Raimundo VI ordenou o assassinato de Pedro de Castelnau, o legado papal. Como já era de se esperar, toda a Cristandade se voltou contra Raimundo: formou-se um exército de cinquenta mil homens. Marcharam, segundo ordens do papa, para extirpar a heresia e expulsar os albigenses dos pontos que ocupavam; mas o caos havia atingido níveis extremos e, pelo ódio do povo, ocorreram excessos que provocaram inúmeras mortes de hereges e inocentes.

“Para os homens desse tempo, a existência no seio do corpo social de uma minoria dissidente, da heresia, provoca uma reação profunda, quase visceral, de intolerância. Não se pode senão recusar-lhe o direito à existência, procurar eliminá-la pela persuasão, se possível, pela violência, se preciso, como o organismo procura eliminar um germe nocivo” (LE GOFF, 1968)

A Inquisição

São Domingos de Gusmão, futuro fundador da Ordem dos Pregadores, seguiu o exemplo de São Bernardo de Claraval e seguiu para pregar ao povo do Languedoc, andando descalço e vivendo a base de esmolas para dar testemunho do Evangelho. Domingos foi feito “inquisidor” antes da oficialização da instituição, em que pregou por testemunho e palavra, ajudando a difundir o Rosário e convertendo mais de cem mil pecadores públicos; dentre muitos, albigenses.

A Inquisição estava a ser moldada, mas só obteve oficialização em 1231, pelo Papa Gregório IX. Pela decadência da eficácia das “inquisições” locais, houve a necessidade da “inquisição pontifícia”, que existiu em colaboração com as preexistentes, mas rapidamente as inutilizou: criou-se um tribunal oficial, independente e permanente, que lutou contra as sociedades heréticas secretas que se esconderam após a cruzada contra os albigenses. Os franciscanos e dominicanos foram encarregados de tratar dos assuntos no local, mas eram constantemente martirizados pelos valdenses e cátaros.

O imperador Frederico II, dando início a ações que voltariam a repetir-se mais tarde[7], tentou usurpar as práticas e julgamentos da Inquisição ao queimar inúmeros hereges a seu bel-prazer, dando pretextos para eliminar seus inimigos políticos e ganhar o apoio do povo, colocando-se acima do próprio Papa ao falar em nome da Igreja como escolhido de Deus.[8] Com esses novos problemas, surge também a nova necessidade de criar um tribunal que verdadeiramente conservasse a ortodoxia sem ser utilizado como instrumento nas mãos do laicismo.

“A regulamentação do proceder por parte do poder eclesiástico e do poder secular, apresentava-se como o meio de reprimir as arbitrariedades com que procediam os príncipes, os senhores feudais e o povo”. (Cf. G. Schnürer, Kirche und Kultur im Mittelalter, II e III, 1929, apud. BERNARD, 1959).

A Inquisição, portanto, estava ligada diretamente ao Papa; podendo este posicionar juízes melhores, como grandes teólogos e frades zelosos. Esses tribunais também funcionavam com juízes permanentes, que atuavam em cooperação imprescindível com o bispo da diocese.

Progredindo, o Papa Urbano IV criou um Tribunal Supremo para unificar a instituição, podendo resolver problemas e dúvidas de maneira mais adequada. A partir desse momento, passa a existir a figura de um Inquisidor Geral.[9] Condenava-se na Inquisição: “heresia, cisma, proselitismo contra a religião do Estado, sacrilégio, blasfêmia, profanação de coisas sagradas, ultraje ao culto, perjúrio, simonia, violação de sepultura, violação de clausura, simulação de sacerdócio, feitiçaria, bruxaria, magia, sortilégio” (GONZAGA, 1993)

A Inquisição Medieval só dura até o século XV e foi perdendo a importância em vários países, com exceção da Itália e da Península Ibérica, onde se adotou um modelo reformulado.

Procedimento

O procedimento inquisitorial, que julgava apenas católicos, possuía pequenas variações de acordo com o país e tempo, mas permaneceu com uma conduta geral homogênea (exceto na Alemanha, já que a Inquisição nunca conseguiu ser instalada em plenitude).

Os processos tinham mais a intenção de eliminar superstições populares que condenar, restringindo-se àqueles que publicamente defendiam suas heresias.

Os tribunais eram sóbrios e privados. Nas salas permanecia o Inquisidor, seus assistentes (variavam em número, podendo exceder cinquenta pessoas), um conselheiro espiritual, um escrivão e guardas. Ao chegar nas áreas heréticas, o Inquisidor dava um sermão público, em que os cristãos faziam juramento de denunciar as heresias. Instaurava-se um período de quinze a trinta dias, chamado Tempo de Graça. Nesse tempo os errantes tinham a oportunidade de recorrer à confissão e absolvição sacramental, recebendo penitências espirituais para se purificarem.

Representação dramática de um julgamento inquisitorial

Chegado o fim do Tempo, os hereges eram citados a prestar juramento sob os Quatro Evangelhos a fim de obedecer a Igreja, dizer a verdade e confessar outros hereges conhecidos. Também permaneciam duas pessoas imparciais e de confiança, que juravam segredo. Se houvessem fortes provas da culpa e ainda assim o acusado se declarasse inocente, poderia (a depender da gravidade) ser posto em prisão processual para aguardar o restante da investigação.[10] O franciscano Davi de Augsburgo apontou aos Inquisidores quatro métodos de extrair o reconhecimento da culpa: medo da morte; confinamento fechado; visitação de outros julgados para tentar uma confissão amigável e a tortura.

Após o julgamento, o Inquisidor sentenciava o acusado como culpado ou inocente. Não era permitido, no caso dos culpados, que fossem aplicadas penas graves ou a entrega ao braço secular sem que o bispo local concordasse. O Papa Bonifácio VIII declarou, tempos depois, que o bispo deveria estar presente em quaisquer penas: graves ou leves.

Ao final de várias sentenças, eram realizados os Autos de Fé: arrependidos se declaravam e os impenitentes eram entregues ao poder secular para a jurisdição. Como reafirma o Prof. Dr. João Bernadino, os atos “tinham por objetivo restaurar no povo a pureza da fé, deturpada pelas heresias, intimidar hereges ocultos e fortalecer cristãos vacilantes.” (1993)

A tortura

Para falar da tortura, cabe não só analisar (novamente) o contexto em que se encontra, mas diferenciar o uso e a prática do próprio método.

A Idade Média, erguida por povos bárbaros, sempre empregou o uso da tortura das mais diversas formas, dito que a questão da matéria corporal era tratada de forma um tanto que grotesca — machucados ou ferimentos não possuíam o centro das atenções; amputações eram feitas sem inibidores de dor e a vida do povo era bastante laboriosa. Ao abordar a Inquisição como instituição medieval e forte influenciadora do Direito atual, é preciso esclarecer que o uso da tortura dentro da Inquisição acarretou uma série de mudanças internas (nos tribunais eclesiásticos) e externas (no poder laico): as constantes mudanças de acordo com o tempo e análise de licitude provocaram reflexos sobre o uso dos métodos de tortura. Quanto aos “museus da Inquisição” que dizem apresentar legítimos instrumentos inquisitoriais, pouco ou quase nada falam sobre as fontes e origens dos objetos, e isto se dá pelo fato de que apresentam um simulacro da realidade: a pera, a guilhotina, a dama de ferro, o berço de Judas e outros instrumentos “medievais”, ou nunca foram utilizados devido à finalidade (a ver) ou sequer eram contemporâneos ao período.[11]

Apesar do infeliz apelo visual moderno, a tortura foi utilizada. Mas diferenciando-se de outros métodos descabidos, como a ordália[12], os inquisidores utilizavam a tortura apenas como método de obter a verdade da confissão (cuja validade seria discutida tempos depois, pelos próprios inquisidores[13]). O uso da tortura foi proibido durante vinte anos após a oficialização da Inquisição, sendo permitida pelo Papa Inocêncio IV na bula Ad extirpanda com as limitações de não colocar a vida em risco ou remover algum membro do corpo[14], além de ser utilizada em última ocasião, caso todos os métodos fossem esgotados. A promulgação da bula precedeu outras medidas que equivaleram a heresia a outros crimes comuns. Evidentemente, houveram excessos: a principal inflição estava na norma do tempo e quantidade de tortura. A determinação papal era de que fosse utilizada apenas uma vez e por não mais de trinta minutos, mas certos inquisidores chamavam a repetição da tortura de “continuação”.

Anteriormente, os tribunais eclesiásticos não possuíam muitos dos poderes seculares e permitiam que a parte laica julgasse as heresias no Direito romano. Isso não permaneceu até que os papas notassem a deturpação realizada pelos confiados, como o citado Frederico II, que impôs as Constituições aos hereges e agiu de maneira reprovável.

Ainda que mais brandas que as do braço laico, as torturas da Inquisição são constatadas como mais graves no início da instituição, isto é, no século XII. Segundo o Dr. Edward Peters (1996), essa maneira drástica se deu ao fato de que muitas das heresias violentas (de tendência maniqueísta, por exemplo) eram encontradas em localidades de predominância do Direito romano. Aliado a isso, os juízes iniciais não possuíam especialidade na regência do Direito e agiam desordenadamente. Dada a dificuldade de provar a heresia, a formação dos inquisidores foi aprimorando, contando com teólogos excepcionais (frise-se o caráter não punitivo da Inquisição) e especialistas em Direito.

“Era um crime difícil de provar; embora constasse que os hereges apresentavam determinados comportamentos, tratava-se essencialmente de um crime intelectual e voluntário; estava radicado em zonas onde os vizinhos e as famílias se conheciam mutuamente e onde as pessoas podiam mostrar relutância em testemunhar, ou podiam testemunhar por outras razões que nada tinham a ver com o respeito desinteressado pela verdade” (…) (PETERS, 1996)

Vale repetir a necessidade da concordância do bispo diocesano e da presença do médico em todas as situações de confissão sob tortura.

São João de Capistrano

Também é interessante comentar a história da relação de São João de Capistrano, inquisidor e contrário a toda prática de tortura. João tentou, sucessivamente falhando, proibir a tortura em todo o território em que era Inquisidor (grande parte da Europa); até que teve a ideia de criar uma falsa situação em favor da proibição: roubou uma sela cravejada em pedras preciosas de um amigo seu, que era senhor feudal. Ao descobrir o furto, o senhor feudal perguntou ao servo responsável sobre o paradeiro da sela, que por sua vez, negou saber. O servo foi submetido à tortura até que confessou tê-la enterrado em determinada terra. O servo, o senhor e João cavaram na localidade, mas nada encontraram, até que o servo fez outra confissão: disse que não havia enterrado, mas vendido a um homem da cidade. Novamente, foram os três tirar satisfações com o homem, que também negou. Ante tudo isso, o senhor resolveu pressionar o servo mais uma vez, até que o inquisidor revelou que ele mesmo a havia escondido.

João explicou a situação e decidiu escrever ao Papa, para tentar negociar. Ouvindo a história, o Papa cedeu e permitiu que fosse proibida a tortura em todo o território do inquisidor, dito que sua inutilidade fora provada.

Quanto aos dados, as torturas foram aplicadas em dois porcento dos julgamentos, dos quais se excluíam mulheres grávidas, idosos e doentes.

A bruxaria

Para tratar da bruxaria, convém relembrar todos os aspectos mencionados nos textos anteriores que caracterizavam a Idade Média e julgaram-na em seu espectro. Reforço que tratarei brevemente deste tema e não será pela sua relação com a Inquisição Medieval, mas pelo simulacro formado em seu entorno.

Embora a bruxaria exista desde a antiguidade, a forma como era interpretada mudou conforme o tempo, época e ambiente: práticas contra a bruxaria sempre ocorreram, principalmente em países de origem germânica e pagã.

Como relata Edward Peters em The Magician, the Witcher and the Law (1978), a bruxaria comportou grandes mudanças na Idade Média, período em que se caracterizou como matéria de estudo nas sociedades secretas. Embora a crença na malícia da bruxas existisse desde sempre, suas realizações se mantinham um tanto que escondidas. A resposta da Igreja sempre foi de combater as superstições populares: aplicavam penas brandas nos tribunais pré inquisitoriais, mas o braço secular possuía outras medidas de julgamento. Os tribunais seculares apreendiam esses praticantes, homens e mulheres e, como esperado, aplicavam repressões físicas de diversos tipos; ainda que a Igreja não as considerasse como ameaça.

A resposta da Igreja só iria aparecer no século XV, no final da Inquisição Medieval. As novas considerações quanto às bruxas influenciaram todo o processo, pois o mundo cristão passava por uma nova crença: a dos demônios como influenciadores. Cria-se, pois, que os demônios não eram puro espírito, mas que poderiam manter relações sexuais com os que os invocassem (semelhante à doutrina dos íncubos e súcubos do espiritismo). É necessário salientar que essa crença partia tanto do povo, quanto dos próprios magos, que haviam retornado a reforçar as características pagãs e amedrontar o povo com práticas de infanticídio, assassinato e envenenamentos por poções. Saliento aqui que as conhecidas repressões da bruxaria ocorreram após a Inquisição Medieval, sendo coincidente à queda do medievo e ao estudo dos feiticeiros. Ou seja, o caos predominou quando estes começaram a se deter nos princípios pagãos de amuletos e sortilégios, bem como a crescente ação dos luciferianos.

O sabbath também era outro fator importante, dito que neles os feiticeiros cultivavam práticas macabras que refletiam o pensamento popular: beijava-se o traseiro de um bode “endemoniado”.

Com a crise do século XIV, intensificaram-se as ações de repressão populares e seculares a ponto de as bruxas serem chamadas de “mártires da loucura popular”.

As ações foram intensificadas com o manual Malleus Maleficarum, momento em que a Inquisição Romana passa a agir. O manual foi fruto de sua época e descreve exaustivamente todos os meios de agir da bruxaria. Outro fator de crescimento foi a Reforma Protestante, que fazia uma forte campanha “anti-bruxas”. Tempos depois, o Malleus foi adicionado ao Index Librorum Prohibitorum e proibido pela Igreja Romana.

O período de repressão às bruxas foi diminuindo com o tempo, principalmente no século XVII com o avanço da teologia.

“A fim de obter uma ideia mais exata da participação do Santo Ofício na caça medieval às bruxas, examinei a relação de processos feita pelo Prof. Richard Kieckhefer e pude averiguar que os processos de bruxaria propriamente ditos estão repartidos entre tribunais civis, episcopais e inquisitoriais. De um total de mil causas, 63% foram julgadas pelas autoridades civis, 17% por tribunais episcopais, ao passo que 20% tocaram à Inquisição.” (Atas SV, p. 577ss, apud. AQUINO, 2009).

A Inquisição Medieval foi uma instituição derivada de seu tempo, elencando os bens doutrinais segundo a moral cristã e inovando todo o sistema do Direito. Tema bastante turbulento, a Inquisição passou e passa por um processo de revisionismo histórico em virtude das transformações iluministas e conflitos sociais a ela posteriores. Com a inquietante ação cátara, os exageros populares e a tentativa do controle de poder pelo secularismo, a Igreja se viu obrigada a reagir de outra maneira, dito que os tribunais eclesiásticos já não podiam confiar a missão da ortodoxia aos governantes. Manejando o Direito comum e romano, a Inquisição influencia diretamente o sistema judiciário atual, seja pela advocacia, promotoria ou proteção à testemunha ao introduzir um novo ideal de julgamento persuasivo e racional que, sendo fruto da fé imutável, renovou toda a jurisprudência contemporânea simultaneamente.

A justiça produzirá a paz (Isaías 32:17)

[1]Da epígrafe original: Como Santa María de Monsarrat descobriu un furto que se fez na sa igreja.

[2]A cantiga repete várias vezes que a Mãe de Jesus Cristo é Senhora de nobrezas e por isso expressa, durante o decorrer da canção, a importância da submissão à bondade justiceira de Santa Maria.

[3]GONZAGA, João Bernardino Garcia. A inquisição em seu mundo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 59.

[4]DANIEL-ROPS. A Igreja das Catedrais e das Cruzadas. 1. ed. São Paulo: Quadrante, 1993.

[5]“Diz-se heresia a negação pertinaz, depois de recebido o baptismo, de alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica, ou ainda a dúvida pertinaz acerca da mesma; apostasia, o repúdio total da fé cristã; cisma, a recusa da sujeição ao Sumo Pontífice ou da comunhão com os membros da Igreja que lhe estão sujeitos.” (CDC, Cân. 751)

[6]Os perfeitos viviam em comunidades isoladas sob uma rígida conduta, enquanto os crentes viviam mais livremente. Para os mais simples chegarem ao céu, bastava-lhes o ritual do consolamentum.

[7]O exemplo mais clássico foi Felipe IV, o Belo. Felipe tentou penetrar na Igreja e conseguir apoio do clero ao mesmo tempo que queimava seus inimigos e destruía a Ordem dos Templários.

[8]Clara preambulação do futuro absolutismo monárquico, onde o rei crê que é tudo em todos. A história mostra que esses fatos se repetiam constantemente pelo poder secular, onde governantes ousavam decidir pela Igreja; vide Constantino, que utilizava do cristianismo para poderes políticos.

[9]Era necessário cumprir três preceitos para ser Inquisidor: as garantias de idade, honestidade e saber. Caso houvessem abusos, o Inquisidor era julgado e poderia ser deposto pela Santa Sé.

[10]Cabe dizer que os prisioneiros tinham direitos estabelecidos, a saber: por enfermidades, pela idade avançada, para a melhora de doenças, para cuidar dos pais, etc.

[11]Grande parte dos mitos vêm da Revolução Francesa, da época da reforma protestante e de pinturas que visavam denegrir a Ordem dos Pregadores.

[12]A ordália ou “julgamento Divino” era uma prática supersticiosa de origem pagã que julgava o acusado por elementos da natureza, como o fogo e a água; ou duelos de espada. O resultado era dado como juízo divino.

[13]Eymerich afirmou: torturas são ineficazes e enganosas (quaestiones sunt fallaces et inefficaces)

[14]Do latim citra membri diminutionem et mortis periculum.

Referências

AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Para entender a Inquisição. 1. ed. Lorena: Cléofas, 2009.

BLTOZER, Joseph. Inquisition. The Catholic Encyclopedia. Vol. 8. Nova York: Robert Appleton Company, 1910. 23 set. 2020 <http://www.newadvent.org/cathen/08026a.htm>.

CATECISMO. Catecismo da Igreja Católica. Vaticano. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/prima-pagina-cic_po.html>.

FALBEL, Nachman. Heresias medievais. 1. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.

GONZAGA, João Bernardino Garcia. A inquisição em seu mundo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1993.

LE GOFF, Jacques. et al. O Homem Medieval. 1. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

PETERS, Edward Neal. História da Tortura. 1. ed. Viana do Castelo: Círculo de Leitores, 1996.

________. The magician, the witch and the law. 1. ed. Sussex: The Harvester Press, 1978.

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